terça-feira, 24 de maio de 2011

Filimone Meigos, um dos cultores das artes em Mocambique: O resgate de outros saberes


“Corpus Quantum” para nos ajudar a compreender a dinâmica que a sociedade deve ter

Com Filimone Meigos pode fazer-se uma caminhada pelo tempo como se nós o dominássemos por completo. Ele fala de “Corpus Quantum” para nos ajudar a compreender a dinâmica que a sociedade deve ter. Falámos do papel da sociologia, da literatura e da política. Mas voltámos sempre à cultura. Voltámos à arte. Resgatámos outros saberes. É assim esta entrevista!



Na noite de abraços reinventava a disposição como recria os seus versos. Em “Poema & Kalash in Love”, nessa sua fuga da guerra para inventar uma “arma de amor”, Filimone Meigos mostra a reinvenção da vida. Ele sempre detestou a guerra e inventou “loucuras” para fugir dela, como o disse um dos seus companheiros na noite de abraços. Já o tinha assumido antes em “Kalash in Love” – “A arma arma-me com tristeza de a dever acariciar/mas faço-o por sufrágio universal” – e o confirmaria nesta entrevista feita também para a Stv: “vamos parar de falar de guerra”. Parámos!

Mas não parámos de fazer uma incursão pela arte e espreitar a sociologia, que é a sua formação, e a cultura, que – isto é nosso atrevimento – é sua forma de vida. Escreveram em algumas páginas que ele e a sua turma de “Charrua” refizeram a literatura moçambicana. Ele prefere falar de um trabalho que seria uma espécie de – “camaradamente” falando – “mudança na continuidade”.

A literatura vinha de uma linha nacionalista e profética de Craveirinha, que sonhava com uma nação com “campeão olímpico”, passando por Noémia de Sousa nesse desejo “let my people go”. Foi essa poesia que procuraria coabitar com versos de combate de Marcelino dos Santos, que repetia “sim mamã/é preciso plantar/pelos caminhos da liberdade/a nova árvore/da Independência Nacional”.

Filimone Meigos faria parte da desconstrução, em termos físicos e temáticos, dos seus versos, assim como o lirismo de Eduardo White, e uma construção “ocupacionista” de Ngungunhane feita por Ungulani.

Com Meigos, pode fazer-se essa incursão pela literatura, como também pela construção da arte e cultura como um todo. Foi isso que fizemos ao iniciar a conversa pelos muros do Instituto Superior de Artes e Cultura.

Qual é o desafio para o Instituto Superior de Artes e Cultura (ISArC) num país em que as pessoas ainda acreditam mais em cursos tradicionais, como Economia, Direito, Agronomia e Medicina?

Os desafios impostos ao ISArC são os mesmos que são colocados a qualquer uma outra universidade, ou a qualquer outro curso, embora com especificidade. e, na minha opinião, posso referir-me a três ou quatro aspectos muito importantes. Primeiro, a infraestruturação das universidades - quer dizer que as universidades devem estar capacitadas do ponto de vista de laboratórios, auditórios, salas de aulas, telas (para o caso específico das artes), por outro lado, a democraticidade. Quando me refiro à democraticidade, refiro-me não só à eleição, ao funcionamento dos órgãos directivos, mas, acima de tudo, ter o estudante como núcleo central da universidade. Quer dizer, toda a acção de uma universidade deve estar centrada no estudante. Mostrar a pertinência de que as artes e cultura são importantes como economia, agricultura, gastronomia, astronomia, porque as artes e cultura foram sempre consideradas uma área que qualquer um pode fazer sem que tenha saído da escola, por isso que sempre é um equívoco.

Como vamos explicar a uma sociedade acostumada a economistas, juristas e agrónomos que as artes e cultura são importantes para o país?

Há aquela máxima da mãe do Mondlane de que temos que aprender do feitiço do branco. Agora, essa máxima não é apenas um apanágio da agricultura, agronomia, direito ou medicina. Nós temos que saber fazer em todas as áreas, incluindo as artes e cultura. Ora, na minha opinião, a universidade dá a possibilidade para que esse saber fazer seja sistematizado. Nós temos uma situação de agentes culturais que nem sequer sabem explicar o que fazem. são bons artistas, bons escultores, pintores e bailarinos, mas não sabem que tudo o que fazem é sistematizado por via da escola. Por outro lado, ao sermos formados, temos o poder de falar com propriedade e de igual modo a nível nacional e internacional, porque a universidade nos dá conteúdo, técnicas e teorias para podermos falar do que nós sabemos fazer de igual para igual. Isso também é preciso nas áreas das artes e cultura, e foi exactamente por isso que foi criado o ISArC.

Mas quem tem acesso ao ISArC. Como é feita a selecção de candidatos?

Há um acesso que é feito à luz do ensino superior (12ª classe) e exames de admissão. Para o curso de designer, o candidato tem que apresentar um portfólio (aquilo que já fez) e há uma entrevista. É verdade que assinámos convénios com algumas instituições, à luz das quais há candidatos que têm entrada directa e bolsas. Julgamos nós que favorece alguns sectores que ao longo dos anos foram desfavorecidos, e nós pensamos que, ao fazer este tipo de equilíbrio, estamos a fazer justiça àquilo que, na nossa opinião, foi injustiçado ao longo dos tempos.

Na questão da justiça, vamos levantar também o que se vem discutindo. Como é que os grandes artistas que não têm formação, casos de Venâncio Mbande, Eduardo Durão, podem dar um contributo. E ao dar um contributo como professores, não haverá um choque entre a ciência e o saber que eles foram adquirindo ao longo do tempo? Como é que esse saber pode contribuir para o ISArC?

No ISArC damos um estatuto especial como professores a Venâncio Mbande, Eduardo Durão, entre outros. Está acolhida essa condição como professores. Infelizmente, a nossa lei do ensino superior não nos permite a entrada directa como estudantes sem que tenham a 12ª classe. Esta é uma guerra que penso que deve ser de todas as universidades, porque há pessoas que têm outros saberes. O que a universidade tem, afinal? É apenas um saber científico. Há outros tipos de saberes de que a universidade precisa. Estou de acordo contigo quando diz que deixar estas pessoas de fora é injustiça. Vamos discutir de que forma como pessoas como Venâncio Mbande, Durão e outros, não lhes sejam apenas outorgados títulos honoríficos, mas também licenciaturas e doutoramentos a partir do saber que acumularam. Na verdade, os saberes são acumulados. O que a universidade faz é outorgar um diploma a partir de conhecimentos acumulados. Como universidade, temos que resgatar outros saberes, acoplá-los à universidade e outorgar não só títulos honoríficos, mas também diplomas.

Que contributo em termos de desenvolvimento económico os jovens saídos do ISArC poderão dar para o crescimento económico de que o país necessita?

Se nós olharmos para os campos sociais, vamos ver que temos economia, cultura, política e por ai em diante. Um jovem formado no ISArC vai poder contribuir na sua própria área de formação. Segundo, vai contribuir, na medida em que vai começar a entender que ao se inserir no processo de desenvolvimento de Moçambique, tem uma mais-valia a dar a partir dos saberes que ele começa a adquirir no ISArC. Entender que aos nossos formandos vai ser injectado um pouco de trabalho, e no processo de desenvolvimento de Moçambique, uma série de saberes e perícias que lhes permitem, eles próprios, contribuir de forma mais sistematizada no processo de desenvolvimento do país. A nossa vocação é formar quadros de nível superior para serem injectados no processo de desenvolvimento do país. Do ponto de vista das indústrias criativas e culturais, formamos uma pessoa de excelência que seja capaz de entender toda esta cadeia de produção artístico-cultural, contribuindo de forma positiva. Como é sabido, as indústrias culturais injectam muito dinheiro nas economias nacionais.

E, no nosso caso, como é que a nossa indústria cultural pode dar um contributo valioso e qualitativo no desenvolvimento do país? Queria que fizesse um olhar como sociólogo e, segundo, como formador de agentes ligados à indústria cultural.

Penso que se formarmos um bom executor, um bom administrador, um bom gestor cultural, um bom pintor, estamos a contribuir de duas maneiras. Primeiro, do ponto de vista epistemológico, esse pintor, gestor, está a trazer algo novo do ponto de vista de visão nas artes e cultura. Segundo, como é que esse formando foi bem formado? Ele vai executar bem a sua tarefa? E ao executar a sua tarefa, ele está cônscio de que está a contribuir sobremaneira na cadeia de valores. Isto é muito importante, porque o processo produtivo comporta o mercado, a componente cultural e processos políticos, porque mexe com aqueles que fazem políticas. e ao fazerem políticas, essas políticas têm que ser adequadas àquilo que nós pensamos que as nossas artes e cultura devem ser.

Parece haver um distanciamento entre a política e as artes e cultura no nosso país, sendo o ISArC e a ECA exemplos que parecem excepções. Como podemos interligar essas duas componentes?

Nós temos um processo histórico bastante curto. São 35 anos de independência. Costumo dividir esse período em duas fases. A que inicia em 1975, até 1986, em que o Estado era promotor e provedor de serviços e bens culturais. De 1986 para cá, com a contribuição do PRE, onde há economia do mercado, a cultura foi sempre passada para o segundo plano. De qualquer maneira, isso não significa que não haja uma vontade política. Aliás, a própria criação do ISArC já demonstra que há vontade política para entender a arte como uma esfera tão importantes quanto as outras. Também é verdade que se tivermos que escolher entre financiar um regadio e um ISArC, certamente que o financiamento irá para o regadio. Aqui, a discussão tem que ser nos seguintes termos: o regadio vai resolver problemas de pão físico, o ISArC vai resolver problemas de pão espiritual. O pão espiritual e o físico valem a mesma coisa, e temos que pensar nisto em termos de perspectivas. O que significa colocarmos para o segundo plano as artes e cultura daqui a 10, 20, 30 anos? Ao mesmo tempo, o que significa não fazer regadios, escolas, no mesmo período? Portanto, temos que ver isto numa perspectiva estratégica. Não há nada que tem que ficar atrás, porque o pão espiritual e o físico valem a mesma coisa.

Queria que olhasse para o valor político. Estamos a falar de Estados como o nosso, que correm muito para a questão do valor do voto. O pão espiritual de que fala tem tanto valor assim quanto o físico?

Tem muito valor. Repare para as eleições como fenómeno político ou cultural, para todas as realizações políticas e de Estado, inclusivamente. Nenhum evento de Estado ou eleições que se prezem ignoram o trabalho de um pintor, de um designer gráfico, de um músico. A questão que se coloca é: estes criadores não devem ser utilizados apenas para questões programáticas ou questões eleitoralistas. Tem que haver uma política que faça deles membros de uma sociedade; agentes artístico-culturais são tão valiosos quanto um polícia, um agrónomo, etc. É essa questão que coloco e que depende da pertinência de nós conseguirmos demonstrar a partir dos nossos primeiros graduados.

Rebusquemos a sociologia. Em Moçambique, olha-se para este ramo como algo muito novo. Até que ponto a arte e cultura estão dentro da sociologia?

Todos nós somos sociólogos. A única diferença entre os sociólogos da universidade e os da sociedade é que os da universidade têm métodos próprios. O que o sociólogo faz é problematizar e equacionar. É verdade que existem várias áreas dentro dela, como a sociologia política, da cultura, do ambiente. a da arte ainda é nova, mas há muitos trabalhos feitos na área das artes e cultura. Naturalmente que há mais propensão a pensar na área da sociologia do desenvolvimento, da política, etc. Se calhar, devíamos colocar assim a pergunta: porque é que as artes e cultura são relegadas ao terceiro plano? Logo responderia: é por causa da maneira como a concebemos, e esquecemos que as artes exercem um papel muito importante. Aliás, a partir das artes e cultura podemos ler o social. Basta ler o poema “Futuro cidadão”, de José Craveirinha, e percebemos que estava lá o que queríamos, como, por exemplo, um campeão olímpico, que queríamos ter uma pátria. E isto foi escrito nos anos 50, 60. Podemos ainda olhar para bandas como Ghorwane, quando foram denominados “bons rapazes”. Com aquele conjunto de canções, podemos aprender o que é que se está a passar em Moçambique, e esse é que é o trabalho do artista, por um lado. Por outro lado, é o trabalho que os sociólogos fazem para, através desses corpos, esses artefactos, podermos explicar o que se passa aqui em Moçambique e em qualquer outra parte do mundo. Se, por lado, as artes e cultura estruturam o sociólogo, por outro, a partir da estruturação, podemos problematizar, equacionar a sociedade e dizer que é isto ou aquilo que o escultor, o poeta e o músico dizem e quem de direito deve tomar em conta.

Recordo-me, agora, que Filimone também já foi actor. Os artistas vão reclamando o seu reconhecimento, primeiro, como profissionais, e também como pessoas que dão um contributo económico e social para este país. Como é que se pode fazer essa construção em termos políticos?

Em primeiro lugar, os artistas devem ajudar-se. O que o Estado faz é ser equitativo, não pode olhar apenas para os artistas, para os desmobilizados de guerra. O Estado tem que olhar para a sociedade como um sistema universal, onde as políticas vão sendo feitas com a necessidade de serem equitativas. Agora, os artistas devem fazer por eles próprios, e eu falo como artista. Temos que estar mais organizados, temos que reivindicar os nossos direitos e, paralelamente, temos que cumprir com os nossos deveres, que cada uma das nossas modalidades seja efectivada efectivamente. Sou Wazimbo, tenho que cantar bem. Sou Ídasse Tembe, tenho que pintar bem, enfim, tenho que fazer bem a minha tarefa e, depois, posso exigir que o Estado reduza os impostos nas tintas, que regule os espectáculos, que regule a Lei de mecenato e todas essas coisas que existem e são benévolas para as artes e cultura. Deve partir do próprio artista, para depois exigir ao Estado, tal como o agrónomo, o economista, os médicos têm “ordem”. quero dizer que aquela associação dos músicos deve funcionar; dos escritores deve funcionar. A partir dos grupos de pertença podemos indagar ao Estado para que leve a cabo aquilo que nós pensámos que são os nossos desígnios.

Está a falar de unidade entre os artistas. O que é que esses artistas podem fazer para além dessa unidade. Estamos a falar de artistas que gostam de reclamar?

Estou a dizer que em todos os segmentos sociais há coisas boas e coisas más. Podes apanhar um bom economista e maus jornalistas, bons agrónomos e maus artistas. Estou a dizer que os maus artistas devem querer ser bons artistas, os maus agrónomos bons agrónomos. Ao seres um bom artista, estás a contribuir, primeiro, para ti. afinal, o que é arte? é a satisfação individual. Arte é criar algo sublime, é o nível mais alto de criação. Quando crias, estás a fazer algo para ti e, depois, para os outros. logo, ao fazeres isso, te outorgas o direito de exigir se fizeres bem aquilo que é a tua missão. O que é uma missão, é ser poeta? E se for, a minha missão é escrever poesia. A partir daí podemos passar para o segundo patamar e dizer: minhas senhoras e meus senhores, eu sou poeta, eu escrevo livros e quero que o meu livro seja posto lá fora e que o Estado subvencione a exportação do meu livro, e por aí em diante.

Como é que um poeta, um sociólogo, olha para a formação superior que existe no país? Estamos a formar gente que vai dar algum contributo, sobretudo quando se fala de democratização do ensino superior?

O poeta olha para esse desafio como a realização de um sonho. O sociólogo olha para essa formação como uma tarefa. Na verdade, seria bom e óptimo que todos nós fôssemos formados, mas, se olharmos para sociedades como a cubana, em que o Estado imprimiu toda uma dinâmica e mais de 90 por cento teve acesso à formação, isso quer dizer que essa sociedade, diga o que disserem, é melhor. E está bem, porque a formação nos dá luzes e abre-nos portas para lidarmos com a realidade circundante. Eu não gosto muito de olhar para os números, embora as estatísticas sejam boas, e eu até tenho uma relação de amor e ódio com ela. O ponto é que sejamos efectivamente bem formados. Até podem ser 500 pessoas, mas estas devem ser capazes de ter o perfil de corresponder aos objectivos que nos impusemos ao formar essa gente, e paulatinamente temos que ser capazes de essa gente que queremos formar ser efectivamente formada. Também não podemos formar só por formar. Também é verdade que, do ponto de vista da Filosofia, temos que ter quantidade para ter qualidade. Qualidade é: se eu formar um gestor cultural, ele deve ser capaz de corresponder ao perfil que me propus a que ele fosse formado. Tem que ser capaz de levar a cabo um projecto, orçamentar, promover um evento e gerir toda a cadeia desse evento, depois equacionar a fase e, inclusivamente, estrategizar futuras acções. É essa gente que nós queremos; um formado capaz de resolver os problemas.

Uma das questões que vêm sendo levantada é a aposta que se faz no ensino superior, e esquece-se do básico. Não estaremos a começar do fim?

Podes ter razão. A única área ou modalidade que tem essa formação total, desde a base até à secundária, é a das artes plásticas. Temos problemas com a dança, música e com as outras áreas. Mas podes questionar por que as artes plásticas, que começaram na mesma altura que as outras áreas, têm escolas e outras não as tem? Bom essa é uma questão que eu próprio deixo no ar, e temos que dobrar o passo para chegarmos aqui. Eu penso que já vimos qual é a equação, qual é problema. Infelizmente, estamos a duplicar tarefas, porque as pessoas têm que ir para a escola normal básica para fazer a 12ª classe, ao mesmo tempo ir à escola de música. Em toda a parte do mundo não se faz isso assim, faz-se as duas coisas ao mesmo tempo, até porque se poupa tempo e se cumpre com as funções.

Alguns sites colocam-no como um grande amigo de Eduardo White, com o qual teria mudado o rumo da literatura, com uma poesia com propostas novas e engajadas...

Nós tivemos sorte. Somos de uma geração pós independência e que, por causa daquele contexto, ficámos muito interligados - eu, Suleiman Cassamo, Eduardo White, Armando Artur, Marcelo Panguana, Ungulani Ba Ka Khosa e outros. Estas coisas de igualdade de circunstâncias têm que ver com o tempo. Fizemos aquilo que nos competia fazer, que era, por um lado, dar continuidade àquilo que tinha sido feito pela geração de craveirinha, Rui Nogar, Calane da Silva, etc. Mas, por outro lado, fazer uma ruptura do ponto de vista da temática, da estrutura, da forma da poesia que nós começávamos a fazer. Porque White começou a fazer lirismo, uma coisa que era impensável na altura, e eu comecei a desconstruir a forma e os conteúdos, comecei a meter guerra. eu fui oficial do exército, isso tem um pouco que ver, porque é minha história de vida. Mas cada um de nós tem o seu percurso, e juntámos todos estes percursos de uma geração. Eu acho que foi uma boa experiência.

A “Charua” começa a surgir no período pós-independência, quando há um peso da poesia de combate. Há da vossa parte um esforço de ruptura com esse tempo, mas também uma ligação com o que se fazia antes da independência...

Temos uma perspectiva de ruptura e uma perspectiva de continuidade, porquê? Porque estamos na confluência entre o sonho e o ruir desse sonho; estamos na confluência entre utopia e uma distopia; estamos a falar da independência que foi recebida com toda a euforia, mas, ao mesmo tempo, essa independência trouxe outras coisas, porque não foi efectivamente independência.

Quando olha para “Kalash in Love”, o que pensa exactamente, muito tempo depois do seu lançamento (1994)?

Eu olho para “Kalash in Love” como fotografia de uma época. Aquele livro começou a ser escrito em Nampula, quando eu estava na escola militar, e fiquei por lá a dar aulas. Quando começou a guerra, tive de ir para a guerra, e, ao voltar, conheci Esménia Sacramento, que tinha um programa de rádio, e nessa altura recomecei a escrever. Tudo isso retorna quando conheço a Esménia, e foi ai que compilei o poema “Kalash in Love”. “Kalash in Love” é uma tentativa de dizer que podemos usar a arma para fazer amor, e em si demonstra atrevimento, é uma situação.

Vamos voltar para o período pós-colonial. como é que a nossa sociedade vai evoluindo, desde esse período até agora?

Eu uso isso na minha tese e estabeleço duas épocas. há uma época (75/86) de provedor de bens e serviços culturais, com toda a sua pujança, e que Samora chama de “o tempo da cultura - sol que nunca desce”. Muito interessante, porque significa que é uma coisa que está lá em cima, a qual todos temos acesso, que se quisermos se sobrepõe ao económico. De 86 para cá, é exactamente o contrário, o económico se sobrepõe ao político-ideológico, e aí está a teoria que na minha opinião define a artes e cultura de Moçambique.

Aqui, parece trazer o poder que a política vai exercer sobre as outras áreas. Qual é a resposta que as artes e cultura podem dar? Acima de tudo, como é que os nossos intelectuais podem aparecer a dar uma resposta a isso?

Há dois aspectos. Um aspecto é apanágio das sociedades africanas que emergem de lutas de libertação nacional. O campo político sobrepõe-se aos outros, e isso é uma fase. mas as sociedades não funcionam apenas com políticos. As sociedades são vários campos, são vários sistemas, e é isso que aprendi em sociologia. As sociedades são sistemas, mas mesmo que nós pensemos nisso como uma fase, há outros sistemas e outros campos que têm que aparecer como equivalentes à política. e se nós quisermos aprofundar, diríamos que aquilo que se estrutura, aquilo que resta depois de tudo é a cultura, e a cultura estruturante é interdisciplinar, diz respeito a todos os campos. nós temos que começar a olhar para a sociedade como sistemas de campos, no geral, e o campo político também é um campo e não deve sobrepor-se aos outros campos. Dentro desse mesmo campo, também há conflitos de interesses, conflitos de comparação, e é bom que potenciemos as relações de comparação, mas também é bom que saibamos que para as sociedades estarem equilibradas, elas estão em conflito.

Qual é a resposta que os académicos podem dar nessa luta e contribuir para que haja um equilíbrio, numa altura em que se fala que nos estados africanos o que mais sobressai é o campo político?

O campo académico é reservatório para a política. ainda bem que é assim. o que se faz normalmente é que aqueles que produzem o saber sejam coaptados para a política e que façam política, porque nós somos animais políticos, quem o disse foi Platão. Se o campo político se socorrer dos académicos, na minha opinião, isso é óptimo, o que não quer dizer que os académicos devem ficar à espera, como se fossem reservatórios no sentido pejorativo do termo. os académicos devem contribuir para o desenvolvimento do país.

Entrevista dirigida por Policarpo Mapengo.

Fonte: Jornal O Pais, Online, 21/05/11

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